Ainda me encontrava no início daquela rua de típico comércio
tradicional, bem frequentada por ser dia próprio, transeuntes, turistas,
compradores e curiosos, como eu, enchiam-na de uma ponta à outra. Plena alegria
popular de uma tarde soalheira, de temperatura convidativa a fugir da monotonia
caseira.
Ali, entre os demais,
me encontrava a ver alegres e animadas montras quando os primeiros acordes se
fizeram chegar até mim. De início pensei que fosse apenas alguma musica vinda
de uma loja, daquelas músicas que a partir de estudos que o tinham concluído,
era usada para atrair e dar aquela boa disposição a clientes, para fomentar o espírito de comprador adormecido ou simplesmente envergonhado. Mas não, o som
era puro de mais para ser uma gravação, os acordes não perfeitos mas mesmo
assim correctos, a música continuada, com altos e baixos, graves e agudos, tão
naturais de quem toca por gosto e não para uma gravação comercial ou de puro e
simples interesse económico.
No meio da colorida e pequena multidão, encostado a uma
parede grafitada, ali se encontrava a origem daquela hipnotizante musica que
tinha ouvido. Não tirando os olhos das montras para não dar um ar de um
interessado desesperado, fui-me aproximando, seguindo os acordes pela rua e por
entre as pessoas até ao local. Apoiando a guitarra na perna dobrada da qual o
pé também vincado na parede ia batendo consoante os acordes, mala da guitarra
aberta em frente a ele, estava o anónimo guitarrista. Os olhos por detrás dos
óculos escuros estavam fechados, notava-se, e assim se mantinham para apenas
sentir a musica, que do contacto dos seus dedos com as cordas, ora suave, ora
tenso, umas vezes rápido e outras de forma mais pausado faziam sair voando pela
rua aquelas notas.
Tocava uma, duas, três músicas de seguida. Umas conhecidas,
outras originais, talvez, por não as conhecer ou provavelmente por essas serem
versões daquele artista de rua. O prazer reflectia-se na sua cara e nos seus
dedos, aquele homem ali, encostado, estava feliz. Reparei que mais eram as
pessoas que por ele passavam e ignoravam do que as que paravam para apreciar um
pouco de arte. Arte sem dúvida, era o que ele oferecia. A rua tinha agora outro
valor com ele, tinha ganho outra animação, outra magia. Dedilhava para ele, não
se importava de quem o ouvia nem das opiniões alheias. Opino que esses que
aparentemente não lhe ligavam mais perderam do que ganharam, insensíveis à
arte, seja ela expressada de uma forma diferente aos seus princípios
artísticos. Aparentemente ignorado, assim o digo porque me pareceu quase
impossível não reparar, não ouvir aquela guitarra e do que ela saía.
Reparo então na mala da guitarra, e no fundo desta, o fundo
via-se bem, infelizmente para o artista suponho, se tal fundo já não se visse
significaria que as moedas já o teriam coberto. Mas isso parecia-me longe de
acontecer. Por mais que ele tocasse, por mais que aquela rua tenha ganho com
ele, ele pouco ganhou com ela. Resultado pouco gratificante para aquele jovem
artista de rua que procurava ali algum reconhecimento económico pelo seu dom
artístico.
Pensava eu.
Quando o artista deu por finalizado a sua actuação, e
enquanto arrumava a sua companheira na mala com poucas moedas, aproximei-me e
estiquei-lhe a mão para uns honestos parabéns pelo que ali tinha acabado de
fazer e pela forma que o tinha feito, sem dúvida digna de verdadeiro e
autêntico apaixonado pelo que faz. O humilde agradecimento deste deu-me o
à-vontade que precisava para lhe perguntar o que o levava a ali estar durante
aquele tempo, horas talvez, por uma recompensa tão baixa. Não contei as moedas
que teria recebido, mas calculei que nem para um bom almoço chegaria. O que o
movia a partilhar os seus harmoniosos acordes com pessoas que o fingiam
ignorar, mas que o ouviam de uma forma gratuita.
O artista respondeu.
Respondeu-me com um sorriso na cara, com uma certeza de quem
sabia o que fazia e pouco se importava com aqueles que o ignoravam. Era um
artista. A guitarra era a sua fiel companhia e adorava tudo o que com ela
conseguia fazer. Partilhava isso com todos. Quanto ao dinheiro, nunca disse que
o queria, apenas ali deixava a mala da guitarra aberta, para arejar um bocado
talvez, mas algumas moedas lá caiam e essas não as iria recusar. Aquele era o
seu espectáculo, naquela rua, no jardim ou mesmo na estação de comboios. O
palco não interessava. Tocava em locais abertos e não em cubículos fechados,
dos quais sentia pavor, confessou.
Tinha o mundo como seu público, nele e para ele tocava, e
que mais poderia ele pedir ou querer além daquela sua liberdade.
O mundo era o seu palco, e ali iria sempre tocar.
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