segunda-feira, 15 de abril de 2013

Desafogo



Era meio-dia, pelo menos assim o achei, não tenho relógio e pressupus a hora apenas pelo meu acordar, e não devia variar muito. Acordei, simplesmente, abri os olhos e o feitiço que me fez viajar para outros mundos horas antes tinha desaparecido, trouxe-me de volta a este. Mas da cama não saí. Não sabendo as horas qualquer compromisso não teria logica alguma de ser marcado, e isso colava-me à cama e os meus olhos ao tecto, dali não havia a necessidade nem a pressa de sair.
Da cama não me desapegava, onde ir não me ocorria e trabalho não existia, cada vez o via mais como um luxo, como a sorte que apenas a outros sorri e a mim me despreza. Já perdi a ilusão, muitas horas de solitário sofrimento, como naquele momento, deitado.
Não tenho comida na dispensa, o frigorifico encontra-se vazio faz dias, não me lembro desde quando. A televisão pouco me interessa, a vida fantasiada pelos média parece-me de um sarcasmo ridículo, as noticias deste país pouca importância têm, tal como o próprio país, e eu. Perco-me muitas vezes nesta comparação, de descobrir qual estará mais perdido e sem rumo. Talvez não goste de televisão, talvez por não a ter.
Deviam ser dezoito horas, creio, avaliando as cores da nuvem que por cima de mim pairava, iluminada pelo grande astro em rota descendente que fazia anunciar o fim de mais um dia. Outro inútil dia, e que a noite depressa aí chegaria, para este inútil.
Vagueei pela cidade, nas suas ruas, parques e estradas, por aí sozinho no meio de outros que tal como eu vagueavam, mas não sem sentido, como eu. No meio de outros não me sinto apenas um, mas sim mais um. Recuso-me a pôr as mãos nos bolsos, aquele vazio perturba-me, evito olhar para montras e lojas, tais luxos ferem-me, fujo de restaurantes, o cheiro extasiante rasga-me o estômago, tento não sair de casa, mas a solidão insulta-me.
Pouco falo, assuntos não tenho e os que tinha já os gastei, raramente troco palavras. Para ninguém telefono, não tenho como, do aparelho tive que me desfazer porque pouco era o descanso dado pelos donos do dinheiro que em tempos usei como meu.
Três da manhã, com toda a certeza da hora, a noite há muito chegou e é pelas estrelas que sei a hora. Ocupo estas últimas horas a observá-las, fazem-me esquecer o meu dia, a minha vida, a fome. Invento histórias e razões, gosto do que vejo e do que imagino, histórias diferentes da estrela cadente em que me tornei, diferentes daquelas que brilham imponentes no tecto do mundo. Não gosto da lua, apesar de em muitas ocasiões me iluminar um pouco o escuro que me rodeia, mas não gosto dela, principalmente quando se apresenta arrogante e grande, quando cheia inunda o céu e eclipsa o brilho das minhas estrelas.
Já não sei que horas serão, perdi a noção, o feitiço tem este resultado em mim, a dormência troca-me os sentidos. Mas vou para onde quero, para onde anseio todo o dia voltar, irei viajar para outros mundos onde lá não sou apenas um inútil, sou tudo. Ali volto a sentir a vida, eu.
Gostava de por lá ficar, talvez amanhã.